Ampliar os objetivos iniciais de uma Medida Provisória (mP 1045) desta maneira é uma artimanha para burlar o legítimo processo democrático de elaboração das leis
* Texto em parceria com: Dênio Rodrigues. Dênio Rodrigues é cientista social
Foto: Reprodução/Associação Nacional dos Servidores Públicos, de Previdência e da Seguridade Social (Anasps)
O presidente Bolsonaro tentou dar mais um duro golpe contra as classes trabalhadoras, com a Medida Provisória 1.045/21. Seu objetivo inicial era instituir o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, com a justificativa de enfrentar as consequências da pandemia de covid-19, no âmbito das relações de trabalho. Felizmente, foi rejeitada pelo Senado, em um inesperado momento de lucidez.
A edição desta MP foi um eloquente exemplo de como Bolsonaro está focado em reduzir e eliminar direitos da população, fazendo letra morta de princípios e normas constitucionais. Seu governo é uma máquina voraz, moedora de direitos sociais e trabalhistas. Tudo para atender aos insaciáveis desejos e interesses da elite econômica nacional e internacional, em uma torpe lógica ultra neoliberal.
Com a medida, o presidente tentou reduzir a jornada de trabalho e os salários dos brasileiros e, mais que isso, atuou para viabilizar, de maneira ilegal, inconstitucional e antidemocrática, a destruição de direitos conquistados. Uma série de "jabutis" – termo usado para identificar matérias estranhas ao tema da MP – foram incluídos no texto de seu Projeto de Lei de Conversão, durante a tramitação na Câmara dos Deputados, todos extremamente danosos em termos de direitos sociais.
Se a MP 1045 fosse aprovada, com os seus "jabutis", veríamos um tenebroso avanço em um modelo de reforma trabalhista que está orientado para reduzir ou eliminar os direitos dos trabalhadores. Seriam aprofundados os retrocessos legais, iniciados em 2017, ainda no golpista governo de Temer. Os desastrosos resultados dessa política podem ser comprovados na precariedade do mercado de trabalho brasileiro e no ritmo estagnado da economia nacional, hoje nas mãos do improdutivo ministro Paulo Guedes.
Ampliar os objetivos iniciais de uma Medida Provisória desta maneira é uma artimanha para burlar o legítimo processo democrático de elaboração das leis. Matérias não diretamente relacionadas aos objetos originários da MP 1.045, que promoviam alterações na legislação trabalhista, deveriam ser tratadas em projetos de lei específicos, com tramitação normal, garantindo-se o necessário, obrigatório e amplo debate público.
Visando apenas a reduzir direitos que hoje são garantidos por lei, era enorme e perturbadora a lista dos descalabros da MP 1.045 e seu Projeto de Conversão, entre os quais destaca-se: incluir jovens em situação de vulnerabilidade social de maneira precarizada no mercado de trabalho, negando a eles a garantia e o acesso a vários direitos trabalhistas e à qualificação profissional. E as empresas ainda seriam estimuladas a contratar nessa modalidade, recebendo incentivos do governo federal, como desconto em impostos.
Jovens de 18 a 29 anos poderiam ser contratados por até três anos, sem manter vínculo empregatício e sem férias remuneradas, 13º salário, FGTS ou qualquer outro benefício, recebendo cerca de R$ 440 mensais – ou seja, 40% do valor do atual salário-mínimo. Poderiam ser descartados sem nenhum amparo ou direito garantido, usados pelos patrões como meras peças de reposição, em uma engrenagem perversa e preparada para sugar a sua vitalidade.
Na prática, seria um regime de semiescravidão, que dilapidaria a força de trabalho dos nossos jovens, afrontando o padrão de proteção social estabelecido pela Constituição, bem como as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto da Juventude.
Acintosamente, a MP 1045 também pretendia restringir a fiscalização trabalhista. Micro ou pequenas empresas e cooperativas, com até 20 funcionários, só seriam autuadas na segunda vez em que um auditor encontrasse a mesma irregularidade. Uma orientação que prejudica os mecanismos de proteção ao trabalho digno, e favorece o descumprimento de direitos essenciais, como aqueles relacionados à preservação da saúde e da segurança dos trabalhadores.
Em mais uma clara afronta ao texto constitucional, ficava evidente a intenção de reduzir e limitar o poder de fiscalização dos órgãos de controle, deixando livres de punição e multas os empregadores que cometessem graves infrações às normas trabalhistas, incluindo a manutenção de condições de trabalho assemelhadas à semiescravidão.
Para coroar o festival de maldades, a MP 1045, de maneira perversa, ainda reduzia as possibilidades de acesso gratuito à assistência judiciária do trabalho. A justiça gratuita é um importante elemento para que os trabalhadores, especialmente os mais vulneráveis, garantam o cumprimento de seus direitos. Limitar o acesso a ela é um crime, bloqueando possivelmente o único caminho para resolver questões trabalhistas, principalmente nos casos de demissões.
Para tornar o cenário ainda mais sombrio, a MP afastava os sindicatos das negociações, homologações e rescisões contratuais, criando um cenário caótico onde os trabalhadores ficariam totalmente vulneráveis na exploração desumana de sua força de trabalho. Também excluía a alimentação do campo das utilidades que a empresa pode fornecer ao empregado como parte de seu salário.
Essa lógica perversa, que favorece apenas o mercado financeiro, banqueiros e os grandes grupos empresariais, é que orienta a política econômica de Bolsonaro. Além de cruel na ótica social, já se provou ineficaz do ponto de vista do crescimento econômico. Negar direitos e reduzir a renda dos trabalhadores, micro e pequenos empresários é achatar o mercado consumidor nacional e reduzir o ritmo de crescimento do PIB. A capacidade de consumo das famílias, de bens e serviços, é um dos principais motores do crescimento econômico.
As promessas de melhorias no mercado de trabalho e de criação de seis milhões de empregos, com a implementação da reforma trabalhista de 2017, não se concretizaram. O que temos na realidade é desemprego em alta e economia estagnada. Contrariando o discurso oficial do governo, inciativas que reduzem direitos trabalhistas acabam agravando a exclusão social e aprofundando as desigualdades nacionais.
Desconstruir e eliminar conquistas históricas, agindo de maneira criminosa e inconstitucional, é o que motiva Bolsonaro a urdir tantas maldades contra o povo brasileiro. Como consequência de seu desastroso governo, temos hoje a inflação disparando em 10%, na taxa anualizada (muito acima da meta de 3,75%) e mais de 40% dos lares do Brasil passando por graves privações alimentícias, com as panelas cada vez mais vazias e a fome voltando a ser um flagelo nacional. Uma taxa de desemprego superior a 14%, com mais de 14 milhões de brasileiros desempregados, 33 milhões subutilizados e mais de 7 milhões subocupados, segundo a PNAD do IBGE.
Esses são os terríveis resultados de uma política econômica ultraliberal, que consolida um péssimo cenário para a constituição de relações de trabalho dignas e decentes. Como consequência da precarização e redução dos direitos trabalhistas, temos um mercado de trabalho desestruturado, com elevadas taxas de desemprego, baixos salários, grande informalidade e alta rotatividade. A Medida Provisória 1.045 e os programas que pretendia criar, de maneira inconstitucional, foram mais uma desastrosa resposta de Bolsonaro e Guedes à atual crise econômica e social.
A literatura e as experiências internacionais bem-sucedidas das últimas décadas comprovam que o melhor caminho para acelerar o crescimento econômico é ampliar o investimento público e privado para dinamizar a economia, garantir direitos trabalhistas e aumentar a base salarial e a distribuição da renda. Bolsonaro e seu governo dos ricos e patrões faz exatamente o contrário: reduz direitos, salários e renda dos trabalhadores, penalizando em especial as mulheres e os jovens.
É a barbárie avançando a cada dia, sob o comando de um presidente autoritário e desumano, que muda as regras trabalhistas apenas na direção de favorecer absurdamente o poder econômico de um capitalismo cada vez mais selvagem, explorador e impiedoso. Nessa direção o Brasil, será cada vez menos civilizado e com uma sociedade a cada dia mais desigual. E só continuará a crescer o desalento e o desespero da população.
Bolsonaro não está interessado em reduzir as desigualdades sociais e regionais ou em governar para construir uma sociedade mais justa e solidária, garantindo a todos os trabalhadores e trabalhadoras qualidade de vida e dignidade. Seu governo é totalmente orientado a favorecer os mais ricos e o mercado financeiro, que ainda lhe dão sustentação – apesar de ele seguir firme em sua tentativa pessoal de golpear as instituições democráticas e as normas constitucionais, para concentrar poderes de maneira ditatorial.
A rejeição da MP 1045 pelo Senado ocorreu também porque a sociedade civil organizada fez uma forte e qualificada oposição à desastrosa medida. Seguir firme nessa resistência democrática, contra um governo federal autoritário e elitista, é o único caminho para que o Brasil retome o seu processo civilizatório.
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